O escritor que nos deixou em legado a «leitura como felicidade», Jorge Luis Borges, é retratado pela memória de um outro escritor, Alberto Manguel, também argentino, que, na qualidade de livreiro e então apenas com 16 anos, foi leitor do decano da literatura mundial. Corria o ano de 1964. Como cenário, a Buenos Aires da época. Os olhos de Borges começavam a falhar demasiado devido a uma doença familiar que acabou por cegá-lo e ter quem lhe lesse em voz alta era uma necessidade. Entre 1964 e 1969, Alberto Manguel foi, assim, um dos privilegiados que leram para Borges. Neste livro, Com Borges, o autor estrutura uma série de memórias sobre essa experiência, conversas partilhadas, referências bibliográficas, leituras e entre linhas.

«Depois da escola, trabalhava numa livraria anglo-alemã em Buenos Aires, a Pygmalion, de que Borges era frequentador assíduo. A Pygmalion era um dos pontos de encontro na cidade para quem se interessava por literatura. A proprietária, Lili Lebach, alemã que fugira aos horrores nazis, fazia por oferecer aos clientes as novidades editoriais da Europa e da Améria do Norte.» É neste contexto que se cruzam Alberto Manguel e Borges, «um dos maiores leitores do mundo». Alberto Manguel, neste livro de memórias, assume que, naquele tempo, «não estava de modo algum ciente do privilégio». De acordo com o retrato que faz dessa experiência singularíssima, Alberto Manguel dá-nos no entanto a noção da singularidade do que viveu: «As conversas com Borges eram, pelo contrário, o que, na minha cabeça, as conversas deviam ser sempre: acerca de livros e acerca do mecanismo dos livros, acerca da descoberta de escritores que eu nunca lera (…)». Este livro dá-nos a dimensão clara de que, para Borges, «a essência da realidade encontrava-se nos livros; ler livros, escrever livros, falar de livros», daí que, no seu caso particular, a sua biblioteca consistisse na sua maior autobiografia.

Em Com Borges, ficamos a par de curiosidades, como a primeira obra que Borges lera, Contos, de Grimm; os muitos autores que o consagraram exatamente como ele gostava de ser, um leitor, por excelência: Eça de Queirós, Oscar Wilde, Lewis Carroll ou Homero; o seu amor pela língua alemã e a sua tendência para ler policiais. Através das palavras de Alberto Manguel, ficamos a saber como Borges era, simultaneamente, «de um sentimentalismo despudorado» e «deliberadamente cruel», não tendo «paciência para a estupidez». Borges «admirava gangsters e delinquentes», sendo o seu género literário de eleição o fantástico. Quando nos referimos a Borges, enfatiza Alberto Manguel, falamos de um homem tímido que se vingou do seu acanhamento pela capacidade que revelou de proferir discursos públicos.

Um dos mais relevantes escritores do século XX, Borges contribuiu para uma apologia única da literatura. Caso ainda não tenhamos consolidado essa ideia, com a leitura deste livro, ganhamos pistas acrescidas sobre o seu principal papel: «o que fica depois de o essencial, sempre inacessível às palavras, se pronunciar». Ela dir-nos-á, porventura, o que nem as palavras se propõem na melhor da sua vontade dizer.

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