Interesso-me por filosofia desde a adolescência, por mérito de uma extraordinária professora que tive, Ana Silva, que despertou desde logo os seus alunos para uma das capacidades inequívocas e fundamentais da disciplina: ensinar a pensar e a escrever bem. Dos filósofos abordados, recordo Platão. E sobre ele fazia-me já há tempos companhia, na mesa-de-cabeceira, um daqueles livros que acompanhavam, por um valor promocional, uma qualquer revista generalista: Platão – A verdade está noutro lugar, de E. A. Dal Maschio. Num momento em que me lembrei de Ana Silva, separei o livro para o ler. Deu-se um encontro platónico, com certeza.

O seu nascimento, na Atenas do século V a.C., foi contemporâneo da morte de Péricles, ocorrida numa altura em que começava a registar-se a decadência da hegemonia política ateniense. Oriundo de uma família aristocrática com uma grande linhagem, Platão desenvolveu e amplificou as categorias do pensamento filosófico ocidental. Na juventude, recebeu uma exigente formação multidisciplinar, com espaço para o desporto, a música, a poesia e, claro, a preparação para a política. Após a morte de Sócrates, filósofo do qual não há indícios palpáveis mas que terá constituído uma importante influência no platonismo, Platão ingressou numa série de viagens, essenciais a qualquer sábio. Regressou a Atenas para fundar a Academia, considerada a primeira universidade europeia e onde os formandos dedicavam 10 anos de aprendizagem à matemática e 5 anos à filosofia. Da Academia, saíam filósofos, homens do saber e futuros governantes.

Platão é também o proponente do Estado ideal, explanado numa das suas obras principais, A República, e composto por três classes distintas: guardiões-filósofos (governantes); guardiões-auxiliares (classe militar); e cidadãos-artesãos (fornecem os meios para a subsistência das classes superiores). Neste campo de reflexão sobre o Estado ideal, surge destacada uma questão primordial: «Como evitar que as classes superiores acabem por utilizar o poder em seu próprio benefício?». É, porém, historicamente imputada a Platão a crítica feroz de que «o Estado platónico não passaria de uma pequena comunidade económica e culturalmente atrasada, uma sociedade ignorante e fortemente militarizada, nas mãos de uma elite reduzida e despótica». Na Grécia antiga, a verdade é que o indivíduo surge essencialmente como membro de uma comunidade, cuja sociabilidade é medida pela ação pública, o que se consubstancia numa visão política mais favorável a uns e menos a outros.

Com Platão, surge-nos a apologia da verdade a partir do conceito de ignorância, relegando para a profissão da ignorância a possibilidade de qualquer conhecimento promotor de sabedoria. Esta visão, com efeito, encontra a sua base de entendimento na conceção socrática e que terá valido a Sócrates uma séria ameaça, já que a sua vida dedicada ao diálogo e à maiêutica com o objetivo de «desmascarar o erro e evidenciar a vacuidade da sabedoria, bem como a arrogância dos poderosos, tinha acabado por lhe granjear não poucos e perigosos inimigos». Platão acrescenta à natureza cognoscível dos objetos uma ideia de Bem: «o que transmite a verdade aos objetos cognoscíveis e dá ao sujeito que conhece esse poder, é a ideia do bem». Na visão platónica, encontramos, ainda, a diferença entre conhecimento e opinião, estando esta associada à ignorância e dependente da experiência falível a partir dos sentidos. Uma das ideias elementares do pensamento platónico advoga, pois, a diferença substancial entre o mundo das Formas (razão) e o mundo sensível (experiência). Com Platão, ficaram definidas as principais questões da disciplina: ontologia, epistemologia, estética, filosofia política e moral.

Constituem agrupamentos fundamentais das suas obras o período socrático, o período de transição, as obras da maturidade e as obras da velhice. Ao longo de todas elas, entramos não só nas ideias de Platão, mas sobretudo no caráter fundacional e nos alicerces da própria filosofia. Este encontro com Platão trouxe-me de volta a um outro livro já aqui retratado, de Karl Jaspers, em que a par de Buda, Confúcio e Jesus, Sócrates é enquadrado como um dos quatro mestres da humanidade, a partir dos quais toda a história do pensamento se processa e desenvolve. Valeu a pena conhecer agora melhor o filósofo que se posicionou, face a Sócrates, como o principal epígono.

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