Anne Carson, neste livro que surge em Portugal com tradução de Tatiana Faia e publicação da não (edições), a editora que sempre a traz, propõe-nos uma explosão de vozes, que ora são as dela, ora são as nossas. Senão vejam. Em Vidro, Ironia e Deus, através de um conjunto de cinco longos poemas e um ensaio em prosa, são extraídas e expostas vozes de mulheres relevantes. E o seu impacto.

Somos chamados a ouvir a da sua mãe e a sua, desde logo. Também a de Emily Brontë e a da sua irmã Charlotte. A partir de leituras de Emily Brontë, aliás, é descrito um amor que acabou. Faz uma incursão sobre a verdade de Deus e, numa outra divagação do seu livro, Anne Carson retrata um elenco de personagens retiradas à ficção e à realidade, quem sabe, num programa de televisão. Mas também nos fala da deceção de uma estada em Roma e das angústias do profeta Isaías.

«O que resulta ao certo/ de tanto esgravatar o passado?», lemos num dos cinco poemas deste Vidro, Ironia e Deus que intercala no seu discurso uma antiguidade útil à memória e uma contemporaneidade que temos por baixo dos olhos. Deambulando sobre o tema mais intemporal de todos, o amor, questiona: «O que é amor?/ As minhas perguntas não eram originais./ Nem eu lhes respondi». Comenta esse meio poderoso que é a televisão: «A TV é inerentemente cínica. Fala ao olho, mas a mente não tem olho».

No final, no ensaio em prosa (dado que também os seus poemas são um ensaio a céu aberto), Anne Carson fala do género do som. Recupera nomes masculinos, de Aristóteles a Freud ou Hemingway, que escreveram sobre a voz estridente das mulheres, criando evidência sobre um pensamento não raras vezes comum acerca das diferenças de género e que esconde, na verdade, um certo receio de uma sociedade patriarcal face ao poder de algumas vozes de comando (que são e foram tantas vezes as das mulheres).

Anne Carson, que é apresentada neste livro, como nos restantes da não (edições), por ter nascido no Canadá e ganhar a vida ensinando grego antigo, vem falar-nos de vozes neste livro, porque ela própria tem uma voz. E a dela é única. Mesmo que isso pareça impossível. Ou meta medo.

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