Arrebatadora. Icónica. À frente do tempo. Bafejada pela sorte ou esculpida pelo destino que lhe deu a voz, o porte de artista, a inteligência para sentir e o dom para escrever. Escrever a alma e interpretar de outros, entre os melhores, as palavras que assentam a todos ou a cada um de nós como uma luva. Uma síntese do ser português. Embaixadora de um país na altura muitíssimo atrasado e que se fazia notar mundo fora através da sua voz. Colocou o mundo a olhar para nós. E nós a ganhar mundo. É Amália Rodrigues. Numa palavra: Amália.

Passados mais de 100 anos sobre o seu nascimento, visitar a sua casa, que se tornou museu por sua legítima vontade, é revisitar a memória de um país, de uma cidade, de uma história que se confundem com o que somos. Porque Amália, afinal, éramos nós. Somos nós. Na Rua de S. Bento, há uma casa que é nossa. A casa para a qual Amália se mudou em 1955. Na fachada do edifício pré-pombalino, não percebemos o que há no interior. Áreas generosas, chão e tetos em madeira, mobílias intactas, pertences dispersos à vista, estantes imaculadas, com vida, peças de vestuário, acessórios de moda, produtos de maquilhagem de quem gostava de se arranjar bem e, na sua devoção forte, pedia que Deus a perdoasse pela quantidade de “trapos” que tinha. E que se mantêm na casa ainda inalterada, como a sua proprietária a terá deixado em outubro de 1999, quando partiu.



Depois de vencermos as escadas que nos levam ao primeiro andar, vemos imponente um dos quadros altivos em que Amália surge representada, com um longo e voluptuoso vestido preto, lembrando a ousadia de introduzir no fado um novo paradigma e a dignidade que o fado até aí não teve. À mão de semear aparece-nos, de seguida, o salão em que recebia assiduamente um círculo de amigos mais e menos íntimos para tertúlias que entravam pela noite e traziam conversas prazerosas e projetos de futuro, para a música e tantas vezes para um Portugal a precisar de irreverência. Na casa de Amália, criavam-se tendências, escrevia-se o virar de página da história do país. Ali desembocavam muitos dos intelectuais, músicos e artistas que fizeram a diferença na vida e na obra de Amália. Ali se fez a famosa tertúlia que juntou Vinícius de Moraes, Natália Correia, David Mourão-Ferreira ou José Carlos Ary dos Santos. Hoje, continuam intactos os instrumentos que já existiam naquela sala, o piano de cauda ou a guitarra. A disposição do sofá e das cadeiras levam-nos a sentir a presença de Amália na sua casa ilesa, nas suas conversas ainda com som. Uma réplica do busto de Amália, do artista plástico Joaquim Valente, que a cristalizou na década de 1960, é erguida num dos pontos nobres do salão. Num canto, uma jarra carregada de amplitude, lembrando a sua paixão pelas flores e a cor. Ali, continuamos na presença de Amália e do cheiro imaginado do seu cigarro.

Na sala de jantar, também ela intocável, encontramos cerejas cristalizadas no contorno do teto. Não havendo certezas indiscutíveis sobre o dia exato do nascimento de Amália, alguém lhe disse que teria nascido no tempo das cerejas. Amália quis que fosse o seu melhor dia de nascimento o 1 de julho. Corria o ano de 1920. Nesta sala, sentimo-nos sentados à mesa, acolhidos por uma Amália que, mesmo no auge da sua popularidade, continuava a receber em casa para um chá ou mesmo uma refeição os admiradores que lhe batiam à porta no intuito de a conhecerem, como com Estrela Carvas aconteceu e cuja amizade com Amália deu origem a uma relação pessoal e profissional que se consolidou durante 30 anos. Num espaço contíguo à sala de jantar, entramos na cozinha imaculada, liderada por Eugénia, com panelas de todos os tamanhos, utensílios múltiplos, um armário pejado do amado chá, em várias qualidades, e a vista para o jardim onde continuamos hoje a ouvir o fado, ao sábado, cantado por artistas das novas gerações que têm na Amália o modelo. Ainda na cozinha, quase sentimos o cheiro da sardinha assada, da sopa de feijão ou do queijo da Beira que faziam as delícias de Amália. E num ponto estratégico do teto, o sistema de alerta das criadas que sinalizavam a divisão a partir da qual Amália as chamava.



Pelas paredes, vamos encontrando vários retratos de Amália que foram sendo reunidos no seu espólio, entre eles o de Maluda, artista conhecida e próxima de Amália. A caminho de uma pequena divisão forrada a livros e com uma vitrina com várias capas assinadas pelos poetas que cantou, como José Carlos Ary dos Santos, Pedro Homem de Mello ou Alexandre O’Neill, avistamos um corredor com um móvel de prateleiras, com fotos simbólicas, entre as quais Amália com Eusébio, retratando a sua afinidade não totalmente escondida com o Sport Lisboa e Benfica.

Entre os quartos, encontramos um espaço dedicado ao atelier de costura, onde eram confecionados os seus fatos por Ilda Aleixo, que vemos numa foto ali exibida e ainda entre nós, centenária. Num armário, nessa mesma divisão, testemunhamos dezenas de fatos pendurados, incrivelmente aprumados como se prontos a usar neste preciso momento. No seu quarto, com uma antecâmara ampla, encontramos uma vitrina larga com as joias mais emblemáticas usadas em espetáculos charneira, às quais se adicionam todas as que podemos ver também num closet específico de acessórios. Nas paredes, mais retratos. E, atrás, um closet de vários metros para a roupa do dia a dia e uma coleção de mais de 200 pares de sapatos, muitos dos quais com altíssimas plataformas, criando a ilusão de ótica sobre a altura, não muito elevada, na realidade, de Amália. O espelho, o perfume, o batom, os famosos óculos escuros grandes, intactos, ali à nossa frente. Assim como, de repente, Os Lusíadas, de Luís de Camões, numa edição antiga e a ligar-nos a letras também cantadas por Amália. No espaço de dormir, propriamente dito, a cama larga, a mesa onde se maquilhava e algumas peças de roupa convocam a imaginação para o seu espaço mais íntimo, porventura solitário. Também para o seu casamento de décadas com o engenheiro César Seabra, que conhecera inesperadamente no Brasil e com quem casara em 1961. Numa das mesas do quarto, vemos numa moldura uma das poucas fotografias que o casal permitiu que lhe fosse tirada. César Seabra não gostava de aparecer e era-lhe concedido esse espaço. Lá fora, no jardim, encontramos um amigo especial de Amália e que ainda por ela procura incessantemente: o papagaio Chico, para o qual Amália cantava e em troca recebia em repetição, «Amália, Amália».

Nascida numa família pobre e sem a capacidade para lhe proporcionar maior escolaridade do que três míseros anos entre os seus 9 e os 12 anos de idade, Amália ainda se ensaiou a costurar e a trabalhar numa fábrica. Mas a sua voz divina chamou atenções quando se estreou no Retiro da Severa, onde aos 22 anos ganhava a cantar mais de quinhentos escudos por mês. No início da década de 1950, iniciava uma carreira internacional que lhe deu acesso aos principais palcos do mundo, desde os EUA, Canadá, França, Inglaterra, Itália, Rússia, Japão ou Brasil, num tempo em que em Portugal poucos saíam do país. Em 1962, lançava o seu primeiro disco agregando poetas renomados e com o contributo também de Alain Oulman, compositor meio português, meio francês, que entregou ao fado de Amália um novo estilo e a colocou a cantar ao piano. Anos mais tarde, cantou Camões e selou para sempre a relação do fado com a poesia. Foi a primeira mulher a ter honras de Panteão Nacional, ao ser transladada para a Igreja de Santa Engrácia, em 2001. Também terão peso inestimável os seus 50 anos de carreira para a atribuição ao fado, em 2011, do estatuto de Património Imaterial da Humanidade. Como imaterial se tornou Amália, símbolo maior do que o fado, símbolo do ser português.

Amália é a mulher que achava desonesto cantar em playback e detestava palavrões, tinha uma enorme devoção a Nossa Senhora do Carmo, algumas superstições nem sempre assumidas, uma timidez atroz, humor confiante, resposta franca na ponta da língua, quase tão rápida como o seu pensamento. Amália é a mulher que acreditava que nada do que o destino ditou podia ser mudado. E o destino ditou que ela fosse a mulher mais inigualável. Que tinha, como poucos sabem, o grande sonho de dançar, mas a quem Deus – «foi Deus» – terá preferido dar uma voz maior.



+ Informação Fundação Amália Rodrigues

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