Sou pela primeira vez confrontada com o nome de Etty Hillesum através de José Tolentino Mendonça, que a cita recorrentemente. Como todas as suas recomendações são para mim palavra de ordem, guardei Etty Hillesum bem guardada na minha memória, à espera de uma oportunidade para a ler. Aquele momento em que há um ímpeto, um fôlego e nos introduzimos numa nova leitura, num novo autor. E a verdade é que, sem qualquer exagero ou figura de estilo, Etty Hillesum chega às nossas vidas para as mudar radicalmente. É determinante o significado que a sua escrita imprime, carregada de autenticidade, profundidade e espiritualidade, influenciando a forma como olhamos, provavelmente, para tudo e para todos.

Na sua experiência espiritual e mística e na própria habilitação interior para a descoberta de Deus, Etty Hillesum é, talvez, um dos profetas necessários neste nosso século XXI. Neste nosso século já seguro na sua velocidade de cruzeiro, mas ainda sem guia. Com caminho, mas sem rumo. A vontade, a paciência e a inteligência de Etty Hillesum são postas ao serviço de Deus, num encontro em crescendo que lhe transforma a vida, mesmo no epicentro do nazismo. As circunstâncias de vida particularmente difíceis de Etty Hillesum fizeram-me ler com zelo Cada batida do coração, um pequenino livro com seleção e comentários de MichaelDavide, monge beneditino especializado na obra de Etty Hillesum.

Este livro introduz-nos na vida da judia, nascida a 15 de janeiro de 1914, na Holanda, pertencente a uma família que se integra na burguesia judaica de Amesterdão. A mesma judia que, a 30 de novembro de 1943, morre aos 29 anos, dois meses depois de ter sido deportada, juntamente com a família, para Auschwitz, na Polónia. Com fraca saúde e permanentes dilemas psicológicos e, depois de vários erros cometidos, Etty Hillesum procura para por ordem na sua vida, aos 27 anos de idade, o psicanalista Julius Spier. Que lhe mudará radicalmente a vida e que é objetivamente responsável pela sua introdução no caminho da espiritualidade. É a partir da relação com Julius Spier que Etty Hillesum se inicia num verdadeiro itinerário de realização humana. Ele oferece-lhe uma Bíblia e ela aprende a rezar. E, à medida que o nazismo vai evoluindo, vai também crescendo a fé de Etty Hillesum, numa promessa dirigida a Deus de que não ficará angustiada com o futuro e de que é possível ser pessoa apesar das misérias humanas inimagináveis.

O «itinerário humano e espiritual de Etty Hillesum» é demonstrativo de um percurso feito até à interioridade, num esclarecimento da fé e numa aproximação ao essencial. Neste livro, MichaelDavide recupera, aliás, Antoine de Saint-Exupéry, que diz que «o essencial é o invisível». MichaelDavide compõe, dizendo que esta é uma «lição fácil de aprender, mas de aceitação muito mais desafiante, para se fazer dela uma bússola das opções da vida; não somente das fundamentais, mas também das quotidianas e, até, das mais banais».

É a oração que dá a Etty Hillesum «(…) a esperança de se encontrar a si mesma e de recuperar aquele centro interior em torno do qual poderá reorganizar e pacificar a totalidade da sua vida». Apesar da barbárie que ela própria, enquanto judia, testemunhou. Etty Hillesum lança, apesar disso mesmo, uma questão ilustrativa da capacidade que ganhou de relativizar, desconstruir, porventura, apaziguar: «(…) porque é que aquilo que acontece a milhares de outros homens não poderia também acontecer-me a mim?». Independentemente das circunstâncias, Etty Hillesum considera que «(…) devemos realizar o mistério da nossa vida como um dom (…)». Avança e, com uma convicção profundamente enternecedora, diz: «Aprendi que um peso pode tornar-se um bem, quando sabemos suportá-lo». Mas, naturalmente, reforça-o MichaelDavide, são necessários «(…) um espaço privilegiado de espiritualidade» e «(…) uma atitude de atenção e de presença (…)».

Etty Hillesum consiste num tributo à absoluta rejeição do ódio e à procura incessante da felicidade, que se repercutem na escolha das suas leituras, na idolatria aos seus autores de referência, como Rainer Maria Rilke, Fiódor Dostoiévski ou Agostinho de Hipona. E, ainda, na sua escrita, que intensifica e apura através da relação com o psicanalista. O legado valiosíssimo que Etty Hillesum nos deixa é, em última análise, a vitória do amor sobre o ódio. O autor de Cada batida do coração diz-nos que «o ódio é uma derrota da nossa capacidade de sermos humanos». E para essa metodologia de vida, Etty Hillesum repetiu à exaustão a relevância da paciência: «Encontrar um género completamente novo de paciência». E acrescenta o perdão e a gratidão, que Etty Hillesum leva até às últimas consequências ao referir-se a Westerbork, centro de classificação dos judeus, onde esteve, como um lugar belo, agradecido a Deus e do qual sentiu saudade.

Etty Hillesum integra em si uma paisagem interior tão forte e firme, que as circunstâncias da guerra não só não lhe retiram verdade, como ainda a tornam mais real e verosímil.

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