Carlos Perdigão

Homem do Direito, com especial ligação ao Direito do Trabalho, sabe por direito com quantas linhas se cose uma equipa e de que massa se faz o jogo que leva um grupo de pessoas (jogadores) a correr por objetivos (golos/pontos) comuns. Cingir-se-ia ao mundo laboral se a paixão pelo futebol não lhe tivesse ficado embutida. Falamos de Carlos Perdigão, natural de Évora e licenciado em Direito pela Universidade de Lisboa e Pós-Graduado em Direito do Trabalho pela Universidade Lusíada e pela Universidade de Salamanca. Iniciou-se no Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações, onde assessorou um membro do governo e compartilhou tarefas em diversos departamentos. Com vocação para a liderança de pessoas, foi Gestor de Recursos Humanos na moçambicana Hidroeléctrica de Cahora Bassa e na APL — Administração do Porto de Lisboa. É advogado e, com a convicção com que interpreta as leis, olha para as quatro linhas do campo de futebol e identifica o encadeamento de cada passar de bola, antecipando golos, com o rasgo de quem observa de fora, sem cair na tentação pouco avisada do treinador de bancada. A sua vida confunde-se com a do futebol e a sua linguagem com o encarnado. Passou pela imprensa privativa do Sport Lisboa e Benfica e integrou várias comissões do clube. Quando nasceu, davam-se duas coincidências: a do dia do nascimento, 28 de fevereiro (a fundação do clube benfiquista), e a do ano, 1954 (a inauguração da versão anterior do Estádio da Luz). A sua vida corre, por isso, entrelaçada com a do futebol benfiquista, na mesma proporção em que a do Benfica se confunde com o século XX português. Carlos Perdigão é um atentíssimo seguidor da História e a sua boa vocação para a contar dá azo, aqui no Entre|Vistas, a entregar a um tema de massas uma abordagem histórica, política, cultural e definidora da própria identidade portuguesa. Na voz de Carlos Perdigão, acérrimo adepto que colaborou no projeto do Museu Cosme Damião, fica outro olhar sobre um clube que mexe, afinal, com o ser português.


Para além da coincidência do seu nascimento bater certo com a fundação do Sport Lisboa e Benfica (SLB), a 28 de fevereiro, e com a inauguração do antigo Estádio da Luz, em 1954, como explica a sua ligação emocional ebuliente ao clube?

São duas datas que traduzem uma coincidência interessante e, neste caso, premonitória. O Benfica é hoje para mim um espaço essencial de convívio, de amizade, de partilha de objectivos e de comunhão de interesses do qual muito dificilmente prescindiria. A história do clube, os seus momentos de fulgor e apoteose e a vivência do seu intenso quotidiano continuam a povoar o meu imaginário, a cativar uma parte da minha vigilância e a preencher algum do meu tempo de lazer, muito ao jeito, afinal, do que acontecia nos tempos de infância. Acresce que vejo o Benfica como um espaço de tertúlia, de solidariedade e de relacionamento intergeracional e esse aspecto, neste mundo cada vez mais plástico e artificial, é para mim muito relevante.

O primeiro documento de que há registo na história do Sport Lisboa refere-se à compra de uma bola usada, adquirida ao Lisbon Cricket Club da Cruz Quebrada. Qual é a sua memória mais antiga do SLB?

Sabe-se hoje que, em regra, a preferência por um clube se forma entre os 2 e os 7 anos de idade, ficando a dever-se, na maioria dos casos, a influências de natureza familiar ou de amigos próximos. Sempre fui do Benfica. O meu pai, de quem, para além de outras características, herdei o nome, era benfiquista, e o meu avô materno, Napoleão Palma, com quem vivi entre os 7 e os 10 anos, foi uma figura com especial ligação ao mundo do futebol, antigo casapiano e ex-jogador do SL Benfica e do FC Porto, contemporâneo e amigo próximo de Cosme Damião, de Ribeiro dos Reis e de Cândido de Oliveira, promotor do futebol em Évora e dirigente do Lusitano de Évora nos anos 50. Guardo uma enorme saudade e gratas recordações do meu pai e do meu avô. Com o meu avô aprendi muito sobre os primeiros tempos do futebol em Portugal.

Apesar dessa ligação muito íntima e intensa, não creio que tenha sido por sua influência directa que me apaixonei pelo Benfica. O meu avô, aliás, não escondia uma certa predilecção pelo Sporting por razões que não vem agora ao caso aprofundar.

Creio que devo ao impacto provocado pela célebre equipa vencedora da segunda Taça dos Clubes Campeões Europeus, a Eusébio, e ao ambiente escolar a minha ligação afectiva ao Benfica, que se viria a consolidar e a perpetuar pelo tempo fora. Frequentava a terceira classe da instrução primária, em 61/62, no Barreiro, na Escola Conde de Ferreira, quando o Benfica bateu o Real Madrid por 5-3 com dois golos de Eusébio, na lendária final de Amesterdão. O Barreiro era um centro por excelência do desporto rei, onde conviviam a CUF e o Barreirense, ambos do escalão maior do nosso futebol. Residiam na localidade alguns dos grandes jogadores portugueses daquela época, entre eles o bicampeão europeu José Augusto. O jogar à bola e as colecções dos rebuçados da bola (com os bonecos dos jogadores) ocupavam muito do nosso tempo livre e eram terreno propício para fomentar uma relação estreita com os clubes. Conhecíamos todas as equipas e todos os jogadores. Ainda hoje me recordo dos onzes completos de vários clubes. A vitória de Amesterdão teve um impacto indescritível na miudagem. Não me recordo, em clima de grande euforia, de algum miúdo que não fosse do Benfica. Esse é o momento marcante que consolida a minha ligação sentimental ao clube. E foi seguramente um momento sublime de afirmação para a dimensão, nacional e internacional, que o Benfica viria a conhecer e que está hoje amplamente reflectida no seu palmarés e na sua massa de adeptos.

A minha memória mais antiga do Benfica está talvez relacionada com um jogo disputado em Évora, frente ao Lusitano, no início dos anos 60. A sensação de ficar sentado no chão, junto à linha lateral, no velho e exíguo Campo Estrela, e de poder ver os grandes jogadores da época (Costa Pereira, Ângelo, Germano, José Augusto, Águas…) a um palmo de distância, cortou-me a respiração. A caminho de Évora, recordo-me de uma faixa de pano sobre a estrada, perto de Montemor-o-Novo, com a inscrição “Os cães ladram e a caravana passa”.

Há milhares e milhares de benfiquistas que são filhos e netos daqueles que, ainda muito jovens, puderam viver por dentro o sonho do Benfica Europeu dos anos 60. É por isso que a dívida de gratidão a esse grupo de valorosos jogadores nunca estará inteiramente saldada. O segredo da grandiosidade do Benfica reside no facto de ter sabido, ao longo dos anos, ser credor e continuador dessa epopeia extraordinária.

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Com a eleição, em 1906, do primeiro presidente eleito no clube, Januário Barreto (médico), o SLB cedo se assumiu com uma matriz fortemente democrática em Portugal (ainda a par da monarquia constitucional). Era um clube à frente do seu tempo, não lhe parece?

Januário Barreto presidiu, de facto, ao primeiro executivo sufragado nas urnas. Estávamos em Novembro de 1906… Não tendo sido fundador do clube, veio a ser determinante na sua consolidação. Há que dizer que, para além de médico distinto, foi presidente da Liga Portuguesa de Futebol, da Academia Lisbonense e da Sociedade Promotora de Educação Física.

Contrariamente ao que sucedeu no início do século XX com alguns dos seus mais proeminentes adversários, a fundação do Benfica, então ainda Sport Lisboa, foi uma obra colectiva resultante da associação de dois grupos de praticantes de futebol da zona de Belém. Enquanto o Carcavelos Club era constituído pelos funcionários ingleses do Cabo Submarino, o Clube Internacional de Futebol (CIF) surgia sob a égide da família Pinto Basto e o Sporting devia o seu aparecimento à iniciativa do Visconde de Alvalade, o Benfica, pelo contrário, nascia da base para o topo, como um desígnio colectivo que tinha em Cosme Damião, Manuel Goularde e Félix Bermudes três dos seus impulsionadores mais destacados. Esta circunstância marcou indelevelmente o futuro do clube que se desenvolveu em ambiente genuinamente democrático, de permanente partilha de responsabilidades, de tarefas e de prestação de contas e de luta constante pela sobrevivência, constituindo, desse ponto de vista, um marco relevante no panorama do desporto nacional que se viria a projectar na paisagem social e associativa do próprio país.

Em 1918 o Benfica contava já com 2000 associados. A vivência democrática do clube, durante o Estado Novo, suscitou alguma controvérsia e mau estar. Os mais velhos ainda se lembram, por certo, dos grandes actos eleitorais realizados na Rua Jardim do Regedor, no coração de Lisboa, com milhares de benfiquistas a ocupar a Praça dos Restauradores e a cumprir o seu dever de votar em tempos em que tal exercício, a nível político, lhes era vedado pela ditadura.

Sem dúvida que, num certo sentido, o Benfica esteve à frente do seu tempo na prática da democracia interna e, curiosamente, mais tarde, na integração europeia, uma vez que aderiu e conquistou a Europa muitos anos antes de o país o ter feito. A participação democrática dos sócios na vida do clube transformou-se, por força das circunstâncias, num paradigma e numa das imagens de marca da instituição, vincando o seu cunho associativo e popular por excelência.

Como escreveu, nessa altura, Artur Portela Filho (“A Funda”, 1972) «o Benfica é, talvez, em querer, em raiva, em improvisação, em talento, em tento, em tino, em cor de pele, em autenticidade, o nosso único braço que cresceu solto, desembaraçado e livre».

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Em 1908, dava-se o assassinato do rei D. Carlos – um dos indícios que deixava adivinhar o fim da monarquia constitucional – e também a fusão entre o Sport Lisboa e o Grupo Sport Benfica, cujos elementos simbólicos se mantêm misturados no atual emblema. Falamos de um clube que, embora se confunda com a história do século XX português, não deixou que nenhum facto externo beliscasse a sua identidade e simbologia…

Sim, é verdade. Há que recordar, a propósito, que o Rei D. Carlos foi um desportista distinto, sobretudo na esgrima. O Rei participou e incentivou muitos eventos desportivos, chegou mesmo a ser dirigente da União Velocipédica Nacional e instituiu o movimento olímpico em Portugal. O seu papel no fomento do desporto em Portugal no final do século XIX foi muito relevante.

O nascimento do Benfica e de uma boa parte dos clubes portugueses, no início do século XX, ocorreu nesse caldo de cultura e está associado a dois acontecimentos que não podem ser esquecidos quando procedemos a uma análise mais cuidada da evolução e afirmação dos clubes desportivos em Portugal. Por um lado, a disseminação do futebol por toda a Europa, a partir de Inglaterra, nos últimos anos do século XIX e nos primeiros anos do século XX (a FIFA é criada em 1904) e, por outro lado, o desenvolvimento em Portugal de um forte movimento associativo.

A conjugação da prática do futebol recém-chegado ao país com o crescimento do movimento associativo explica, em larga medida, a formação de muitos dos clubes desportivos no início do século XX. Por essa altura, com efeito, assistia-se a uma explosão de sociedades de cultura e recreio, de clubes, de cooperativas e de associações, cuja relevância no desenvolvimento social e cultural dos portugueses viria a ter um papel determinante.

Uma grande colectividade desportiva como o Benfica, dada a sua relevância social, sofre sempre as influências da sociedade em que se insere e projecta, igualmente, a sua influência no espaço público. O sociólogo alemão Norbert Elias dizia, a esse propósito, que o conhecimento do desporto era a chave para o conhecimento da sociedade.

O Benfica, apesar da evolução dos tempos, manteve-se sempre fiel ao ideário dos seus fundadores e o seu emblema revela bem as duas facetas mais características do clube: a águia altaneira, símbolo de independência, autoridade e nobreza e o ecletismo, hoje como ontem reflectido nas muitas modalidades a que o clube se dedicou e dedica.

Arrancava a Primeira Grande Guerra (1914-18) quando, por cá, era fundada a primeira delegação oficial do Benfica, a Estrela Futebol Clube de Braga. Hoje há por todo o mundo, dos EUA a Timor-Leste, uma proliferação de casas, filiais e delegações do SLB. É a materialização da transversalidade geográfica e cultural do clube? É isso também a mística benfiquista?

Em 1917 o clube dispunha já de 3 delegações nas colónias de África, mais concretamente na Beira (Moçambique), em Luanda (Angola) e em S. Tomé. Cosme Damião, numa histórica entrevista concedida aos Sports Ilustrados em 28 de Outubro de 1911, reiterava a estratégia de desenvolvimento do clube para os anos vindouros: o Benfica não ficaria confinado a Lisboa, mas teria delegações em vários pontos do país, assumindo-se como um clube à escala nacional e não como um mero clube da capital. Daí até à criação das delegações de Portalegre, Coimbra, Porto, Figueira da Foz, Setúbal e Faro foi um passo. O resultado dessa política que, entretanto, galgou fronteiras, está hoje expresso nas largas dezenas de casas, delegações e representações do clube por todo o mundo. Este universalismo é, certamente, uma das manifestações mais eloquentes da mística benfiquista. Mas a abertura do clube à sociedade foi decisiva no seu crescimento e afirmação.

António Sobral, dirigente dos primeiros tempos, dizia em 1945: «O Benfica, desde a sua fundação, tem recebido no meio associativo toda a gente. Desde a mais humilde à mais categorizada individualidade. Dentro da nossa casa não há selecção de classes. Pertencem todos a uma grande família». O Estádio do SL Benfica é hoje o exemplo vivo e sublime deste interessante mosaico social. Há uma conclusão do I Congresso do clube com uma síntese particularmente incisiva: «Caldeado na escola, enraizado no coração do povo, o Benfica assumiu proporções de grande realidade sociocultural do nosso tempo, servindo sempre de casa forte e inviolada àquele conjunto de altos ideais humanos a que nós, orgulhosamente, chamamos mística».

É natural que um clube genuinamente popular, fundado de forma democrática e com um ideário associativo e desportivo muito avançado para a época cativasse a atenção dos melhores, em particular dos homens da cultura.

No SLB dos primeiros anos consagraram-se vários jogadores que mantinham em paralelo uma atividade artística. Podemos referir Ralph Bailão, cenógrafo no Parque Mayer, Francisco Santos, escultor e pintor celebrizado em França e Itália, autor da estátua do Marquês de Pombal, ou Eugénio Salvador, ator, um dos maiores nomes do teatro de revista. Este clube das décadas de 1920/30 era um catalisador do talento no sentido lato?

É natural que um clube genuinamente popular, fundado de forma democrática e com um ideário associativo e desportivo muito avançado para a época cativasse a atenção dos melhores, em particular dos homens da cultura. Em 1917, pela mão do próprio Cosme Damião, foi criado um grupo cénico. A promoção da cultura, em particular da música, do teatro e do cinema, desde muito cedo mobilizou a atenção dos dirigentes. Em 1935 foi inaugurada a biblioteca do clube, na sua sede da baixa lisboeta, com cerca de 1000 volumes nacionais e estrangeiros para leitura e consulta. O clube chegou mesmo, por essa altura, a disponibilizar as respectivas instalações para a realização de um curso de instrução primária promovido pela Universidade Livre com o apoio do Diário de Notícias.

As instituições são, como sabemos, o reflexo das suas lideranças. Entre os primeiros presidentes do clube, contam-se algumas importantes personalidades da cultura portuguesa: Alberto Lima (1911 e 1913/15) fundou o primeiro jornal de clube no país; Félix Bermudes (1916/17, 1930 e 1945/46), poeta e dramaturgo, deixou o seu nome ligado a peças teatrais, comédias e revistas, e Bento Mântua (1917/26) destacou-se como dramaturgo, ficando associado à criação do teatro regionalista. Mais tarde, em 1955, foi criado o Suplemento “Cultura e Desporto” no jornal do clube, da responsabilidade do antigo dirigente e jornalista Carlos Carvalho que promovia as artes e as letras. Por esse suplemento passaram nomes como José Saramago, Miguel Torga ou Aquilino Ribeiro, a elite das letras portuguesas. Há muito, entretanto, que o xadrez e a filatelia coexistiam no clube. Como se vê, também nesta matéria não há lugar a acasos. A instrução dos associados e o seu desenvolvimento cultural sempre estiveram entre as prioridades daqueles a quem estava confiada a condução da grande nau benfiquista e, por essa razão, nada ficou esquecido nesse importante plano de intervenção.

Hoje em dia, o portal do clube, a BTV, a imprensa privativa (jornal O Benfica e a revista Mística), o Museu Cosme Damião, o Orfeão, a Fundação Benfica e a multiplicidade de eventos e realizações lúdicas e culturais levadas a cabo são espaços que dão continuidade a essa política e que projectam para o exterior um outro Benfica, de matriz mais cultural e associativa, que não se confina à competição e aos pavilhões e relvados onde se exibem as suas inúmeras formações.  

Figuras públicas benfiquistas provêm de diferentes áreas:

Na política: Álvaro Cunhal,  Bagão Felix,  Manuel Alegre,  Xanana Gusmão

Na literatura: António Lobo Antunes,  António Mega Ferreira,  Aquilino Ribeiro,  João Tordo,  José Cardoso Pires,  José Saramago,  Natália Correia

Na representação: Eunice Muñoz,  Ruy de Carvalho,  Vasco Santana

Na música: António Vitorino de Almeida

Quer pela reconhecida matriz ideológica de alguns dos seus dirigentes (que sempre souberam, aliás, separar as águas), quer pela sua vivência democrática por excelência (assembleias gerais e eleições para os órgãos sociais muito participadas), quer pela natureza genuinamente popular da sua massa associativa, o clube foi sempre olhado com alguma reserva por alguns dirigentes do antigo regime.

O hino oficial do Benfica, “Avante Benfica”, criado em 1929, foi censurado pela ditadura. Em 1936, a censura é também responsável por colocar no índex a palavra “vermelhos”, substituindo-a por “encarnados”, não fossem os adeptos do SLB ser confundidos com os comunistas que na Guerra Civil Espanhola combatiam os falangistas de Franco. Apesar da sua força democratizadora, o SLB não escapou à evolução da própria história do país e do mundo…

Os exemplos dados são paradigmáticos. As instituições não são indiferentes ao mundo que as rodeia. O Benfica acompanhou a vida e evolução do país, foi condicionado e condicionou a evolução da sociedade portuguesa. As relações do clube com o Estado Novo têm dado origem a especulações superficiais e nem sempre bem ponderadas. O tema justificava estudo aturado. Quer pela reconhecida matriz ideológica de alguns dos seus dirigentes (que sempre souberam, aliás, separar as águas), quer pela sua vivência democrática por excelência (assembleias gerais e eleições para os órgãos sociais muito participadas), quer pela natureza genuinamente popular da sua massa associativa, o clube foi sempre olhado com alguma reserva por alguns dirigentes do antigo regime. É um facto que, ao ter conquistado a Europa nos anos 60, com um conjunto de jogadores oriundos das colónias de África na sua equipa principal, com Eusébio em plano de grande evidência, o clube pode ter servido as intenções do regime de fortalecer no plano internacional a imagem de uma nação pluricontinental e multirracial do Minho a Timor. Mas, como hoje se reconhecerá, o que, objectivamente, ficou para a posteridade foi a projecção do clube e do seu emblema pelas quatro partidas do mundo e a consolidação de uma marca que há muito fazia o seu caminho de forma consistente. São muitos os exemplos conhecidos de que o clube, ao longo do século XX, esteve sempre do lado certo da história.

Em 1954, com a inauguração do Estádio da Luz, o clube não só põe fim a 50 anos de “casa às costas”, como assinala pela mão do técnico brasileiro Otto Glória a sua profissionalização: a criação de um centro de estágio, a introdução de regras, instrução académica, ensino do inglês, lições de etiqueta e, até, idas ao teatro de revista no Parque Mayer… Estas bodas de ouro são uma segunda vida para o futebol benfiquista?

Há, de facto, um antes e um depois de 1954. Para trás fica o futebol da baliza às costas que, paulatinamente, dá lugar no nosso país à profissionalização dos praticantes da modalidade, profissionalização essa que viria a ser decretada pela Lei n.º 2 104, de 30 de Maio de 1960, em cuja Base I se podia ler: «Os praticantes de desporto podem ser amadores, não amadores e profissionais». Essa alteração modificou por completo o paradigma até então existente na organização e gestão da estrutura do futebol e dos profissionais a ela associados.

Acresce que foi na época de 1955/56 que teve início a maior prova de clubes da UEFA, a Taça dos Clubes Campeões Europeus, hoje Champions League.

No plano competitivo as três décadas seguintes seriam de exuberante afirmação benfiquista, com 19 campeonatos nacionais conquistados entre os anos de 1960 e 1990.

A partir de meados da década de 50, nada mais seria como dantes em matéria de treinos, de alimentação, de cuidados médicos, de recuperação, de alojamento, de rotinas de vida diárias. Essa revolução no Benfica foi pioneira e ficou a dever-se à visão de Joaquim Ferreira Bogalho (o “homem do Estádio”, o presidente que inaugurou o mítico Estádio da Luz), com o apoio inestimável de José Ricardo Domingues, e à experiência e desempenho insubstituíveis do treinador brasileiro Otto Glória. A concentração dos jogadores no chamado Lar do Jogador foi um elemento chave na concretização dessa reforma. Estávamos na antecâmara do Benfica Europeu de 60 que, nesta década, participou em cinco finais da maior competição europeia de clubes, tendo vencido duas dessas edições e tornando-se, a partir daí, uma lenda à escala planetária.

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No ano de arranque da década de 1960, quando começavam a crescer as exportações nacionais, o SLB foi declarado Instituição de Utilidade Pública (a 6 de setembro). Este estatuto é um reconhecimento da intervenção que o clube tinha já consolidada na sociedade. Como comenta esse papel inquestionável?

Há muito que o clube fazia jus a tal distinção. Por um lado, pelo relevante papel desenvolvido na promoção do desporto, da cultura e do associativismo; por outro lado, pelo inestimável contributo para o desenvolvimento cultural e social dos seus praticantes e associados e para o reforço e projecção da imagem de Portugal no mundo. Como um dia escreveu António Mega Ferreira, «o Benfica é uma imagem feliz e expressiva do País, porque se identificou com o país onde cresceu».

Dava-se em 1962, em Lisboa, a crise estudantil a enfrentar o Estado Novo, quando, após a conquista da segunda Taça dos Campeões Europeus, António de Oliveira Salazar chama a São Bento jogadores e equipa técnica do SLB para condecoração. À saída, Béla Guttmann anunciava que não continuaria como treinador por não se sentir capacitado para treinar tantos comendadores: «Nem daqui a 100 anos uma equipa portuguesa será bicampeã europeia e o Benfica jamais ganhará uma Taça dos Campeões sem mim». Esta declaração transformou-se num mantra aos ouvidos dos benfiquistas?    

A Taça dos Clubes Campeões Europeus, com o figurino de então, já não existe e, nessa medida, já nenhum clube a pode conquistar… Seja como for, alavancada pelos media, essa superstição tem feito o seu caminho pela circunstância de, entretanto, o Benfica ter já disputado, em quatro décadas diferentes, mais oito finais europeias, cinco finais da Taça dos Clubes Campeões Europeus (1963, 1965, 1968, 1988 e 1990) e três finais da Taça UEFA/Liga Europa (1983, 2013 e 2014) e não ter ganho qualquer dessas finais. Enquanto isso acontecer a profecia de Gúttmann, seja qual for o sentido que lhe queiramos atribuir, encontrará o terreno fértil para ir fazendo o seu caminho…

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Em 1973, ano em que foi fundado o semanário Expresso, estreava um filme do famoso realizador espanhol Juan de Orduña, rodado em Lisboa, sobre Eusébio: Eusébio, a Pantera Negra. Que importância tem, ainda hoje, Eusébio da Silva Ferreira?

A Assembleia da República, na oportunidade em que aprovou por unanimidade a transladação dos restos mortais de Eusébio da Silva Ferreira para o Panteão Nacional homenageou «o símbolo nacional, o futebolista e o desportista excecional para a época, evocando o seu estatuto de um marco na divulgação e na globalização da imagem e da importância de Portugal no Mundo».

A síntese é particularmente feliz e responde à questão colocada. Como escreveu um dia Carlos Pinhão, «na era de Eusébio, Eusébio é que era». Eusébio seria hoje um jogador de excepção, seguramente entre os três melhores da actualidade. Mas o reflexo do seu desempenho para o país não seria o mesmo em virtude das alterações políticas e sociais entretanto verificadas em Portugal e do novo enquadramento do país a nível internacional como membro da UE.

De facto, nos longínquos anos 60, Eusébio contribuiu para reforçar uma certa ideia de identidade e de orgulho nacional; abriu ao mundo, através dos seus feitos no Benfica Europeu de 60 e na Selecção Nacional de 66, um Portugal esquecido e subalternizado internacionalmente pela ditadura; impôs-se como um exemplo de esforço, de humildade e de talento; em suma, deu corpo a um fenómeno irrepetível e transformou-se num mito indissociável do próprio clube que o projectou.

Na época 1984/1985, o clube assume uma marca patrocinadora nas camisolas, a Shell. Foi uma aposta visionária, como veio a perceber-se pela evolução dos patrocínios ao futebol…

O Benfica tem estado na linha da frente das grandes inovações estruturais e tecnológicas da chamada indústria do futebol. É, de resto, reconhecido por isso um pouco por toda a parte. De facto, só em 1995 é que a UEFA permitiu que os clubes pudessem exibir equipamentos com patrocinadores nos jogos das competições europeias. A Alemanha e a Inglaterra foram pioneiras dessa solução na década de 70, seguidas pela Itália. Bayern de Munique, Liverpool e Juventus estão entre os primeiros gigantes a lançar mão dos patrocínios nas camisolas. Em Portugal, o FC Porto (Revigrés) e o SL Benfica (Shell) foram os primeiros clubes a promover esse negócio. A indústria do futebol movimenta hoje biliões de euros, as provas internacionais ganharam uma visibilidade excepcional em virtude das transmissões televisas e os patrocínios nos equipamentos representam uma importante fatia das receitas dos clubes, que será cada vez mais alargada e desenvolvida, designadamente associada a outros negócios potenciais envolvendo os patrocinadores.

Entre 1985 e 1987, o SLB teve o maior estádio da Europa: com a conclusão do Terceiro Anel, em 1985, o Estádio da Luz tinha uma capacidade estimada de 120 mil espetadores. Na inauguração, Mário Soares levava uma gravata verde. Foi um ato de ousadia daquele que viria a ser o Presidente da República seguinte?  

Mário Soares, com quem me avistei em várias ocasiões e de quem sou admirador, nunca evidenciou especial predilecção pelo futebol e não lhe eram conhecidas especiais ligações clubísticas. A utilização de uma gravata verde nessa cerimónia só pode resultar desse relativo divórcio com o universo do clubismo puro e duro, não lhe devendo ser atribuído qualquer outro significado. De resto, em nada abonaria a popularidade de Mário Soares, um político muito experimentado, entrar em rota de colisão com uma massa adepta com um peso eleitoral não negligenciável… No dia 1 de Dezembro de 1992, por ocasião da homenagem nacional a Eusébio, Mário Soares esteve na Luz e acompanhou o antigo jogador ao centro do relvado. Os tons da gravata, vá lá saber-se porquê, já eram bem diferentes…

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Com a sua águia Vitória, que voa na Luz desde a inauguração do atual estádio (25 outubro 2003), o SLB é dos raros clubes em todo o mundo a exibir publicamente o seu símbolo vivo. Qual é o significado que lhe parece ter hoje o emblema do SLB?

Faço minhas as palavras de Alfredo Gaspar, causídico distinto e antigo dirigente do clube (já falecido) em artigo publicado no jornal Público de 13 de Janeiro de 1997: «Os fundadores (do clube) tinham, de certeza, uma inteligência robusta. Como símbolo elevaram a águia, que a mitologia sempre associou à força e à vontade titânicas. Como cor, escolheram o vermelho, a cor por excelência, o arquétipo da cor, a primeira de todas as cores. Como divisa adoptaram o lema E pluribus unum, que tem sido interpretado como “um por todos e todos por um” (…)». É essa a complexa realidade que se projecta a partir do emblema a que não falta a roda da bicicleta, em homenagem ao papel decisivo do ciclismo, modalidade de grande relevo nos primórdios do clube e decisiva para a consolidação da sua popularidade a nível nacional. O regresso do ciclismo será sempre um reencontro do Benfica com o melhor da sua história. A Águia será sempre, em qualquer caso, o elemento determinante na identificação do clube.

Na Football Money League, da Deloitte, o SLB acaba de entrar no top-30 dos clubes com mais receitas do mundo (152,1 milhões de euros), posicionando-se como o único clube português presente no ranking. Quando em 2007, o SLB entrou no mercado bolsista, já se posicionava de acordo com a Interbrand como o clube mais valioso do futebol português. Do seu ponto de vista, como se explica esta hegemonia? Não é só uma questão de tesouraria…

Essa trajectória de crescimento acentuou-se muito nos últimos anos e a SL Benfica Futebol, SAD apresentou no final da última época de 2015/16 receitas consolidadas de 211,9 milhões de euros. No caso do Grupo Benfica essas receitas ascendem a 236,6 milhões de euros. São valores impressionantes e sem paralelo em Portugal, que traduzem, por um lado, a dimensão do universo Benfica e, por outro lado, a elevada performance conseguida pela gestão do clube. No ranking da UEFA, o Benfica ocupava no final da última época (2015/16) a sexta posição, sendo apenas superado pelo Real Madrid, Bayern de Munique, FC Barcelona, Atlético de Madrid e Chelsea FC. A aposta na formação, a expansão das actividades do clube para novos mercados (sobretudo para o mercado asiático), a progressiva modernização das infraestruturas, a contínua valorização da marca e a presença assídua em fases adiantadas da principal competição europeia de clubes contribuirão para fortalecer cada vez mais a situação competitiva e financeira do Benfica e para promover a sua expansão a nível nacional e internacional.

Para o sucesso do Benfica e dos clubes portugueses em geral é, no entanto, necessária a existência de um clima saudável e de cooperação institucional entre todos os parceiros da indústria do futebol. O clima de guerrilha e de permanente suspeição que se instalou no futebol português, bem ilustrado pelo ruído infernal, inconclusivo e constante que varre diariamente o espaço televisivo nocturno, só serve para empobrecer o futebol e os clubes e para que cada vez mais gente de bem deixe de acompanhar a modalidade. A maioria dos estádios em Portugal está literalmente às moscas, sem que isso provoque um rebate de consciência nos responsáveis pelo futebol em Portugal. No futebol, como em tudo o mais, só gente séria, competente, informada e credível pode conduzir ao sucesso o destino das instituições.

Números e curiosidades:

– O sócio n.º 1 do SLB foi durante muitos anos Faria Leal, responsável pela redação dos primeiros estatutos do clube.

– No ano em que se deu a implantação da República, em 5 de outubro de 1910, 4 jogadores do SLB, entre eles Cosme Damião, participavam no primeiro jogo da Seleção Portuguesa (em Huelva, frente à Espanha).

– Eusébio foi o primeiro jogador em Portugal a ser remunerado por uma marca desportiva, a Puma, que lhe pagou um prémio no valor de 70.000 dólares pela conquista do título de melhor marcador do Mundial de 1966.

– Manuel Bento foi o único guarda-redes do SLB que marcou um golo no tempo regulamentar de um jogo e, ainda, o jogador mais velho a vestir a camisola do SLB (fê-lo com quase 42 anos).

– O SLB é um dos clubes portugueses mais galardoados de sempre, com várias condecorações e ordens honoríficas.

– Em 2008, o SLB foi galardoado com o prémio Superbrands, atribuído às marcas portuguesas com estatuto de excelência.

Na Bíblia do Benfica, surge uma passagem a declarar que «o clube tocou o paraíso, mas também conheceu o calvário. Explica como alguns jogadores se tornaram deuses; e como o povo nunca perdeu a fé desfiando rosários de terços, em novenas sem fim, dentro ou fora da catedral». Parece haver no “benfiquismo” uma dimensão religiosa ou de fé… Concorda?

Voltamos, de certa forma, à mística benfiquista. Já reparou, a propósito, que se falarmos de mística em relação a qualquer dos adversários mais conhecidos do Benfica, a ideia parece não resultar tão bem? E se tratarmos por Catedral os Estádios de Alvalade ou do Dragão? Também não resulta, não é? Essa mística comporta, certamente, manifestações de uma certa religiosidade, que se exprime na forma como se veneram os deuses, neste caso, os jogadores que ostentam a camisola de águia ao peito ou, melhor dizendo, o manto sagrado. O clube, pela forma como nasceu e pelo singular percurso da sua história, surge talvez no imaginário de adeptos e simpatizantes com uma auréola de divindade, como qualquer coisa de sobrenatural que conduz à contemplação. A tudo isto acresce um particular sentido de pertença, de crença comum (neste caso, e sobretudo, na principal equipa de futebol), de afirmação da identidade de um grupo e da prática de um ritual comunitário (a assistência regular aos jogos de futebol e das demais modalidades). Artur Semedo, actor, empresário teatral, realizador e produtor televisivo, disse um dia: «O Benfica é a minha religião».

Não se substituindo à política por razões óbvias, o Benfica, enquanto associação desportiva, é certamente um actor relevante na promoção dos valores e princípios de uma sociedade democrática moderna e avançada.

Artur Portela Filho, escritor e adepto fervoroso, dizia que o Benfica é «reserva do povo» e «inventado para substituir a política». Para além da vertente religiosa, poderá ser esse um dos papéis principais do SLB? Hipoteticamente, o principal desígnio nacional?

A afirmação de Portela foi produzida num contexto político e histórico muito preciso, mais concretamente em 1972. O Benfica funcionava, por essa altura, como um espaço de liberdade e de dinamismo colectivo. O clube sempre promoveu a cidadania e os valores da participação cívica. Esses valores convidam eles próprios à participação dos adeptos e simpatizantes nos grandes desafios que se colocam à sociedade. Se consultar, por exemplo, a mensagem do Presidente Luís Filipe Vieira no Relatório & Contas de 2015/16, verá uma alusão à aposta na formação desportiva e cívica dos atletas. Não se substituindo à política por razões óbvias, o Benfica, enquanto associação desportiva, é certamente um actor relevante na promoção dos valores e princípios de uma sociedade democrática moderna e avançada.

Esta é a época em que são assinalados os 113 anos do SLB. O que profetiza para o clube daqui a outros tantos 113 anos?

O clube não pára de crescer. Contava, no dia 31 de Dezembro de 2016, com 184.264 associados, número muito actual em função da reinscrição há muito pouco tempo realizada. O Estádio registou nos jogos da Liga de 2015/16 uma média de 49.058 espectadores, que corresponde à lotação dos estádios dos seus concorrentes mais directos e que vai ser ultrapassada na presente temporada 2016/17. Ter o Estádio lotado, independentemente das flutuações na tabela classificativa, deve ser um dos objectivos a alcançar pelo clube, à semelhança, de resto, do que ocorre com outros emblemas europeus (veja-se, por exemplo, o caso do Borússia de Dortmund).

A aposta na formação de talentos e na progressiva modernização das infraestruturas está entre as prioridades de gestão anunciadas pela administração. A internacionalização da marca continuará a fazer o seu caminho. Tudo aponta para um futuro risonho, em que a diáspora terá uma importante palavra a dizer. As novas gerações continuam a rever-se no clube. O investimento para atrair os mais jovens às actividades e valores da colectividade será, porventura, o passo mais decisivo a dar. Pais e avós cumprirão aquele que é já um ritual conhecido em todo o mundo. O Benfica há muito que projecta o seu futuro além-fronteiras. Assim o obrigam a relativa dimensão do país e a débil condição financeira de uma grande maioria de portugueses, a maior parte deles, como o esclarecem todos os estudos independentes disponíveis, com uma enorme ligação sentimental ao clube.

Colaborações de Carlos Perdigão no registo da história do SLB:

– Como jornalista desportivo, colaborou no Mundo Desportivo, Jornal de Notícias e Motor. Foi redator e colaborador-especial do jornal O Benfica e d´O Benfica Ilustrado.

– É autor (texto) do Livro de Ouro do Benfica (ed. DN) e coautor de Benfica – 85 Anos de História, Benfica – 90 Anos de Glória e 100 Anos de Lenda (livro do centenário do SLB, edição DN).

– Participou na Grande Enciclopédia dedicada aos Europeus de Futebol (ed. DN) e colaborou na coleção Sport Lisboa e Benfica, 100 Gloriosos Anos (ed. A Bola).

– Colaborou no projeto do Museu Cosme Damião e tem intervenções regulares na BTV.

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